A COISA QUE NÃO CAIU!
Vô Hipólito era uma figura e tanto! Para provocá-lo a contar seus causos, era muito fácil. Bastava chegar em seu velho casebre onde morava com Sinhá Dasdores, sentar-se em frente à velha bacia cheia de brasas, e puxar prosa. Pronto, lá vinha ele com as lembranças, as comparações cheias de detalhes estranhos, e desfechos que sempre acabavam em dúvidas, arrepios, sustos e muito suspense. As histórias quase sempre envolviam um misterioso acontecimento perdido nalgum lugar no tempo. Uma das primeiras coisas que qualquer visitante fazia ao chegar era pedir-lhe a bênção: “Sabença vozin!”, “A bença vô!”, “Sua benção vô!”. No tempo de Vô Hipólito era costume pedir a bênção às pessoas idosas em sinal de respeito. Lá no meio da conversa alguém fazia uma pergunta qualquer:
_ Vozin, é verdade que toda porteira de invernada é assombrada? – Pronto, era a deixa. Antes de responder apanhava um velho cachimbo que ele mesmo fabricara. A peça era uma porção de argila, modelada no dedo, cozida no borralho com canudo de taquara para sugar a fumaça. Enquanto cortava uma medida de fumo amarelinho, conhecido por tietê, iniciava a prosa:
_ É verdade Zi, é verdade. – ao mesmo tempo em que respondia a pergunta, ia desfiando o tabaco picado, esfregando o fumo entre as mãos e enchendo o recipiente do cachimbo. _ É por causa das judiação qui os bíchu sófri num é? Deus botô ispírto em quarqué ser vivênti, Zi. Dimanêra qui quando os bíchu morre, os ispírto fica zanzâno à toa puraí assustâno as pessôa.
Usando uma colher entortada, num ângulo de noventa graus, apanhava uma pequena brasa e depositava em cima do fumo triturado dentro do cachimbo.
_ Certa ocasião Zi, nóis ainda era tudo rapáizim – Sugando vagarosamente o caniço, tirava baforadas cheirosas que infestavam o ar entrando narina adentro. E assim continuava contando a história: Eram todos jovens ainda. Moças e rapazes caminhavam longas distâncias à procura de diversão. Era comum andarem a pé de um sítio a outro; de uma fazenda à outra, onde participavam de festas, atividades religiosas ou bailes de barracas comemorando alguma coisa: casamentos, batizados... Alguns companheiros, que tinham mais recursos, usavam suas montarias. Altas horas da noite voltavam fazendo o caminho inverso. Na hora de ir, tudo bem; mas na volta morriam de medo de assombrações que existiam, aos montes, no imaginário das pessoas. Exatamente por esse motivo, para provocar pavor nos outros, muitos companheiros puxavam casos a respeito e vinham contando pelo caminho.
_ ... Pois intão, como lê dizia, nessa ocasião, a gente vinha proseâno, proseâno e entrêmo numa invernada, muito grande de um tár de coroné Tiburço. Passêmo a primêra portêra; dali inté chegá na ôtra, inda tinha muitas légua. – dava uma sugada no cachimbo – Ocê tá lembrada Dasdô? – gritava para a companheira.
_ Tô sim Hipólito, tô sim uai! Num é aquele causo lá da portêra do coroné Tiburço? Ocê acha qu’eu havéra d’esquecê daquela gemeção toda hômi!?
_ Devéra Dasdô, é ele mêmo. Pois então Zi, quando a gente ia chegâno na ôtra portêra, inhantes de abri, danô uns grito isquisíto vindo lá da ristínga, pras banda d’um córguim... - a cada pausa remexia o fumo dentro do cachimbo para fortalecer a fumaça. Dava uma longa sugada no canudo, e borrifava a fumaça por um dos cantos da boca desdentada. De vez em quando virava de lado e disparava uma cusparada na parede de taipa e voltava ao assunto: _ ... Intão um cumpanhêro gritô: “É árma d’ôtro mundo gente! Vâmo corrê!” Todo mundo saiu na carrêra, sem oiá pra tráiz, Zi, de medo de vê arguma coisa. Na portêra uns passô por cima, ôtros vazô por báxo e deitô o cabelo no vento! Né mêmo Dasdô? – Sinhá Dasdores chacoalhava a cabeça concordando, como se o marido pudesse ver, de lá de onde se encontrava, que estava dizendo que sim!
Quando a situação estava no auge do suspense, ele vinha com a explicação. Neste caso tratava-se de uma vaca com sérios problemas de parto. As fortes dores, que provavelmente estava sentindo, provocavam distorção dos mugidos, dando a impressão de soturnidade, de tratar-se de algo desconhecido. Uma investigação no local no dia seguinte comprovou tudo. Mãe e filho haviam perdido a vida. O filhote, que vinha saindo de frente, estava com o cordão umbilical enrolado no pescoço. De forma que, quanto mais força fazia para sair, mais o cordão lhe apertava a garganta. Então...
Numa outra circunstância, da mesma forma, vinham eles do vilarejo, em grupo depois de uma tarde de andanças de um lado para outro aproveitando a folga domingueira. Já era noitinha quando resolveram voltar para casa. Um ventinho ligeiro movimentava nuvens escuras para os lados do morro. Ia chover. Porém, embora tornasse a volta mais longa, resolveram acompanhar os trilhos do trem da Leopoldina, assim evitariam um bom pedaço de lamaçal. O diabo é que os trilhos do trem passavam nos lugares mais assustadores, mesmo durante o dia; à noite então!
As chuvas pesadas sempre enviam avisos de advertência. Ventos, relâmpagos e trovões são sinais assustadores, que deixam pessoas e animais em pânico. Para quem mora em casas toscas, sem nenhuma segurança, é normal sentir esse medo. Mas mesmo pessoas que moram em casas melhores, até em mansões com toda segurança, têm medo de tempestade! É provável que essa fobia faça parte de algum instinto registrado em nossa memória histórica, vindo desde o tempo de nossos ancestrais. A tempestade estava por um fio. Todos caminhavam apressadamente, sobre os dormentes da estrada de ferro. Ninguém falava nada, o silêncio era profundo. Naquele momento atravessavam uma garganta cavada no morro para nivelar os trilhos. A escuridão era tétrica. Não se via coisa alguma a poucos centímetros do nariz. De repente, algo parecido com um saco cheio de coisas dentro, começou a rolar lá de cima do morro, e veio descendo o barranco aceleradamente, no maior estardalhaço. Todos pararam a espera do baque da coisa no chão. Alguns pedriscos caíram, mas foi só. O que parecia ser um saco cheio, pesado, não caiu. Aquilo foi o suficiente para dar início a uma debandada geral. Foi uma correria sem precedentes na história da turma. Ninguém queria ser o último e assumir o risco de ser alcançado pela coisa que não caiu.
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