REDOMA DE CHOCOLATE-06
Zé Góes
Vô Hipólito dizia que Zé Góes gostava de chamá-lo de sábio, mas que nunca se considerou um sábio, pelo contrário; se considerava um caipira, bicho da roça. “Vozin é um sábio. – dizia Zé Góes - Aprendo tudo co’ele; num é Vozin?” “Vozin disqui num é bão ficá na roça com sór muito quenti. Si Vozin, quié sábio pensa anssim, então mió mêmo é í pra casa, num é? Eu que num vô ficá doido, que nem cachorro lôco nesse sór quenti derretêno os córno. Ara, mais num vô mêmo siô!”
Assim era Zé Góes. À tarde, nem bem o sol principiava a baixar, Zé já rumava para casa. Para amenizar o falatório da esposa, Sá Zica, Zé Góes juntava logo um feixe de lenha amarrava com algumas embiras, jogava nas costas, e com o cabo do guatambu ia abrindo caminho por entre a sementeira, tomando o rumo de casa. Ladeira abaixo ia cantarolando alguma modinha que ouvia no serviço de alto-falantes da igreja nos dias de festa. Mal chegava ao rancho, uma choupana de pau-a-pique, salpicada de barro misturado com cinzas e estrume de gado, com cobertura de sapé, Sá Zica já gritava lá da mina, arcada sobre o batedouro de roupa:
_ Eita Zé, isso lá é hora diocê vortá pra casa hôme!? O sol’inda nem dobrô o morro siô, í ocê já arribô pra casa heim? Óia qu’inda ti tomo as carça í vô pro eito no lugá diocê heim!? Dêxo ocê aqui na berada do fogão heim Zé, qu’ieu num sô de acoitá home vagabundo! Diacho!
A brabeza de Sá Zica era comparada à de uma onça, e tinha um jeito muito próprio de falar. Só mesmo a convivência de muitos anos permitia às pessoas entenderem seu jeito caboclo de emendar as palavras, umas às outras, engolindo e trocando letras. Quase um dialeto. Para o povo do lugar, aquele era o jeito natural de se comunicar. Não eram conversas, eram prosas, mas muito diferentes da língua-mãe. Para as pessoas de fora, era quase impossível entender o que ela falava. Quando ficava enfezada, Sá Zica principiava a cuspir de banda, aproveitando as falhas na arcada dentária. O líquido gosmento e escuro, saía em jatos pelo canto da boca. Era o resultado do hábito que tinha de mascar folhas secas de tabaco. Zé Góes se defendia querendo mostrar quem detinha o comando da situação, mas no fundo sabia que quem mandava de verdade era ela.
_ Vixe muié! Sussega muié, que um dia inda manso ocê, num é? Num tá vêno a quentura do sór? Tá querêno me vê zanzâno que nem cachorro doido puraí, siô?
Zé Góes era uma figura e tanto! Não era de dar muitos ouvidos aos desaforos de Sá Zica. Quando chegava a casa, o primeiro ímpeto era jogar uma margosa peito adentro. Mas no meio da semana não convinha. Melhor era esperar o domingo, junto com os amigos, durante a Festa de Sant’Ana. Aí sim, molhava a goela e jogava truco, sempre com a aquiescência de Sá Zica. Vô Hipólito costumava dizer, com uma pitada de ironia, que Zé Góes gostava mesmo era de uma boa sombra e muita água na moringa.
Quando pretendia deixar o eito mais cedo, sempre arranjava umas desculpas para se justificar à Sá Zica. Usando dessa artimanha evitava o falatório da esposa. Então chegava da roça resmungando, reclamando de umas dores na espinha, umas comichões pela virilha, umas tonturas. Sabia que Sá Zica tinha o coração mole. Era sempre assim. Forjando uma aparência doentia, sentava sobre um tronco de peroba à beira do rancho, e preparava um palheiro. Primeiro escolhia entre as espigas de milho amontoadas na tapera, uma com palhas bem largas e finas. Depois, com um pequeno canivete que ganhara de um compadre, ia alisando a palha, correndo a lâmina pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. Ora por baixo, ora por cima. Enquanto isso proseava com Sá Zica. Em seguida cortava as duas extremidades da palha, ficando com alguns centímetros do meio dela. O vício era um verdadeiro ritual. Uma vez preparada, a palha era levada à boca onde ficava presa entre os lábios. Depois era a vez do fumo. Com a mão esquerda segurava um naco de fumo de corda, feito em casa; e com a direita, ia desbastando, vagarosamente com o canivete, a ponta negra do rolo de tabaco, enquanto pequenas quantidades iam caindo na palma da mão em concha. Quando a porção parecia suficiente, dava algumas lambidas na palha, para amaciá-la um pouco mais, colocava a porção de fumo, esparramava sobre a extensão da palha, enrolava, umedecia novamente as pontas do cigarro, enfiando-as na boca; segurando com a ponta da língua, ia retirando em seguida, vagarosamente. Estava pronto o crioulo. Mas antes de acendê-lo, ficava observando-o de vários ângulos, como se admirasse a obra. Sacava da binga e manejava o dedão sobre o fuzil, mas a geringonça sempre negava fogo. Sá Zica ficava de banda só espiando. Já acostumada, aproveitava a oportunidade para oferecer ao marido uma caneca com café esquentado no borralho do fogão à lenha. Trazia a bebida e também um tição fumegante, que era para o Zé Góes acender o crioulo.
De minha Amiga Fil-Ó:
ResponderExcluirOi, Fidélis!!! Não sei lidar com "Blog" (ainda aprendo) então, falo aqui mesmo... falo da alegria que sinto lendo seus textos: a maneira como enreda o enredo me encanta... me surpreende por não saber até, então, que gostava de escrever. Siga em frente, meu amigo, o mundo das letras é seu também e, nos delicie com seus causos, com sua prosa. Parabéns! Que mais poderia dizer? Beijão e vê se aparece por aqui... saudade, muita saudade!...