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segunda-feira, 19 de abril de 2010

PROSA

REDOMA DE CHOCOLATE-04

Fogo Fátuo

Pedro, por ser analfabeto, só conseguia empregos onde as tarefas consistiam em trabalhos sujos, pesados, cansativos e perigosos, cuja remuneração ínfima, só beneficiava o patrão miserável e mercenário. A falta de dinheiro em casa, provocava todo tipo de desavenças possíveis. Discussões, brigas, sopapos, escoriações, sangue. A família sentia falta de roupas, calçados, agasalhos; passava fome, sede, frio; morando em cortiços onde os casebres, completamente impróprios à moradia, guardavam em seu interior incontáveis espécies diferentes de insetos, que provocavam os mais variados tipos de doenças na pele, nos olhos, nos cabelos, no coração, na alma. Pedro era um eterno devedor. Ao senhorio, dono do cortiço, ao bar do Bigode, onde tomava suas biritas, à venda de Seu Adamastor, onde Maria, eventualmente implorava que lhe vendesse mirradas quantidades de sal, azeite e fubá, que ela usava para preparar uma gororoba a qual, depois de vários dias com a barriga vazia, a gente comia com gosto. Era uma espécie de angu preparado com fubá, misturado com folhas de ervas apanhadas na beira da estrada, como serralha, ora-pro-nóbis, caruru, beldroega e outras tantas.
Desde muito cedo Piah e seus irmãos presenciavam cenas conflituosas dentro de casa. Refletir sobre aqueles acontecimentos, foi um importante instrumento para manter o equilíbrio entre a lógica e a razão na vida do menino que viria a ser o senhor Nellton. Refletir é permitir que os pensamentos se voltem para o mundo em nosso entorno. Só assim é possível descobrir que existem forças estranhas que nos invadem e nos empurram para rumos diferentes daqueles que demarcamos para serem nossos projetos de vida. Por mais que olhemos para trás, fica muito difícil descobrir que forças são essas que interagem para traçar nossos caminhos. Acontece com a maioria de nós. Será o destino? Com Piah não foi diferente. O traçado dele foi muito difícil e dolorido, mas o resultado não foi em vão. Em suas reflexões descobriu que na vida não existem coisas fáceis. Que primeiro é preciso o calvário, depois o gozo.
A meditação leva à descobertas muito interessantes. Ela mostra, por exemplo, que a busca é contínua tal qual o tempo e que o aprendizado é infinito.
A primeira vez que Maria juntou as crianças e sumiu de casa, com uma trouxa na cabeça, Piah não tinha mais que oito anos de idade. Foi para a casa de um irmão seu que morava nos arredores de uma pequena cidade chamada Congonhas. Tinha brigado com Pedro por causa de Ernestina. Pedro, além de ganhar uma miséria, obrigando mulher e filhos a passar por todas as necessidades, ainda corria abastecer a amásia tão logo se apossava dos míseros trocados. Maria, ao tomar conhecimento da existência da concubina do marido, virou fera. Reclamava por ciúme e pelo direito de gastar com a prole o pouco que Pedro ganhava. Pedro retribuía primeiro com indiferença, depois com gritos e xingamentos e finalmente com sopapos.

De tanto levar esfregões imerecidos Maria estava deixando de ser boba; passou a ouvir os conselhos de Dona Hortência, a vizinha. Agora, quando Pedro saía por uma porta, ela juntava a filharada e desaparecia por outra à caça de proteção. Ela é que não ia ficar apanhando de marido a vida toda. Os pais de Maria eram pessoas muito religiosas. Ensinaram que não se deve profanar o nome do Senhor. Mas às vezes Maria não resistia ao desejo de maldizer a vida e reclamar do destino que Deus traçara para ela. Achava que o Criador a tinha escolhido para remir todos os pecados do mundo, tão exacerbado era seu infortúnio, tão imenso e pesado o seu fardo. Mas era muito temente a Deus.

Foi assim que depois de um dos ataques de fúria do marido, após uma discussão, reuniu rapidamente as crianças, colocou alguns tarecos num saco e saiu apressada rumo à casa dos parentes atrás de guarida. A noite já ia longe, a caminhada era longa, a casa do irmão ficava a mais de quinze quilômetros da Vila Gavião. Naquela noite aconteceu algo que além de assustá-la e à todas as crianças, a fez ajoelhar-se e pedir perdão por suas reclamações contra a Onipotência Divina. Já estavam caminhando há mais de hora por uma estradinha que mais parecia uma picada. Paralelamente ao caminho, uma densa lavoura de café formava uma espécie de muro enegrecido pela fragilidade da luz de uma noite quase escura; do outro lado uma invernada que se descampava numa pequena ladeira até formar uma planície que sumia à visão noturna, cercada com arame farpado, esticado em grossos mourões de madeira. Deviam ser de aroeira. Vô Hipólito, pai de Pedro, dizia que aroeira era a madeira mais resistente que existia. Que se fosse jogada na água, ao invés de apodrecer, virava pedra!

Maria queria caminhar o mais depressa que pudesse, mas as crianças, ainda pequenas, não conseguiam acompanhar seus passos. Eram três no chão, uma no colo e mais a trouxa na cabeça:

_ Óia pra frente minino, não tá vendo o toco fincado no meio do caminho?
 Falando assim com um e com outro, ia conduzindo a prole estrada afora, noite adentro, fugindo da sagacidade violenta de Pedro. O esforço da caminhada fazia o suor respigar de sua face cansada, mas ela continuava corajosamente. Uma brisa refrescante batia na cara dos fugitivos. Embora ela já conhecesse o caminho, dentro da escuridão perdia o rumo da trilha a todo instante. De vez em quando dava topadas em árvores e pedaços de paus soltos pelo chão. Desandava num ataque súbito de maldições, como era de seu costume, e aproveitava para conferir se todos estavam próximos chamando cada um pelo nome:
_ Miúda!
_ Tô aqui mãe! - respondia a mais nova.
_ Piah!
_ Humm... - rosnava mal-humorado o mais velho, contrariado pela marcha forçada.
Assim, de uma em uma as crianças iam respondendo aos apelos da mãe. Corações aos pulos, trêmulos pela inquietante ameaça que a noite trazia, seguiam atentos a qualquer barulho que escapulia de dentro da escuridão. Mal tinham como controlar o próprio medo quanto mais observar os tocos que se afloravam a cada passo à frente, quando pisavam sem saber onde e sobre o quê. Maria seguia caminhando presa às teias de seu destino tentando, sem sucesso, desligar-se do emaranhado de problemas que se tornara a sua vida, se é que aquela desgraceira toda pudesse ser chamada de vida. Completamente absorvida em seus pensamentos, nem percebeu que a mais nova não estava mais a seu lado, agarrada em sua saia como havia ordenado à menina. Quando deu por fé:
_ Ai meu Deus do céu! Jesus e Maria... Acode! – gritou desesperada. _ A Miúda sumiu gente! Cadê a minina, ocêis não viram? – atônitos, todos se voltaram à procura da mais nova. A poucos metros atrás divisaram a silhueta da menina plantada no chão, imóvel, como se estivesse dormindo em pé. Maria se penitenciando, pediu perdão a Deus pelos maus pensamentos que tivera há pouco contra o Onipotente. Correu ao encontro de Miúda. Ia dizer alguma coisa, mas a menina falou primeiro:
_ Óia mãe, uma lúiz azú! – apontando para um dos lados do pasto. Mas como estava escuro ninguém sabia para que lado ela estava apontando.
_ Onde, diacho? Cê tá doida minina! Não existe lúiz azú em canto nenhum! Lúiz é tudo igual, cor de fogo uai! – mas a mais nova insistia:
_ Lá ó, lá diante!
Yah, a do meio, também localizou o fenômeno dizendo:
_ É mãe, lá no pasto! Ói que bunito! - Quando Maria enxergou a mecha de luz fosforescente, gritou apavorada
_ Credo em cruiz! Virge Maria! Deus que me perdoe! Vai de reto que aquilo há de sê mêmo é assombração! Óia só como anda de um lado prá ôtro? Ela vem é atráis de nóis. Vâmo corrê criançada!

Entre os brados de esconjuro de Maria, saíram todos em debandada para onde supunham ser a estrada. Entre gritos e empurrões, cada um tratou de salvar a própria pele. Naquele momento nada poderia ser tão apavorante do que uma linda luz azulada bailando no meio de um pasto ermo, ao sabor do vento. A luz, aquela luz, era muito mais assustadora do que os sons estranhos que a noite trazia. Nem mesmo os assobios do Saci galopando sobre os cavalos de Seu Mamed, com sua única perna, ou as bufadas horripilantes da Mula-Sem-Cabeça, dos causos de Vô Hipólito, eram tão terríveis quanto aquela luz maravilhosa, naquele lugar perdido no meio do mato. Luz Azul... Maria tinha visto poucas luzes na vida, e todas pareciam da mesma cor. Tanto as de lamparinas usadas em casa, quanto as dos lampiões lá das ruas de São João Nepomuceno, em Minas, ainda quando criança. Eram todas iguais, cor de fogo, mas azul...? Que linda!

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