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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

PROSA

REDOMA DE CHOCOLATE-08
ZÉ DO PITO – “O Pernilongo”

"Prá t’incontrá meu coração fugiu de casa
andô treis dia e parô prá discansá"

A figura simples e carismática de Vô Hipólito não sai de minha cabeça. É estranho. Me lembro claramente da morte de minha avó Maria Dasdores, mas de meu avô não. É como se ele tivesse apenas desaparecido. Por algum motivo se mantém escondido nalgum canto de minhas lembranças contando os seus causos. São tantos. Mas nada se compara ao folclórico causo de Zé do pito, uma história que Vô Hipólito nem gostava de contar. É que, ao final, as pessoas saiam achando que o episódio era na verdade, uma grande mentira. O próprio Vô Hipólito tinha lá suas suspeitas com referência a este caso. Achava que era coisa da cabeça de seu compadre Leriano. Mas não gostava de desmentir o que tinha chegado até ele como sendo verdadeiro. Esta história teria se passado com um caboclo conhecido como Zé do Pito, num lugar ermo às margens do Rio Manhuaçú, em Minas Gerais, na divisa com o estado do Espírito Santo. Zé do Pito era um negro turrão, caboclo sacudido, sério, corajoso, trabalhador e, a exemplo da maioria dos homens do lugar, gostava de poucas coisas: pitar um cachimbo ou fumar um cigarro de palha com fumo forte, tomar uma boa cachaça e pescar no Rio Manhuaçú.
Uma coisa que Vô Hipólito não admitia era ser afrontado. Também não gostava de interferências durante suas explanações. De maneira que mesmo que houvesse nuanças hilárias durante as falas, o melhor mesmo era segurar o riso. Mas isso nem sempre era possível. Muitas vezes, no meio de uma narrativa, alguém começava a rir baixinho, de repente o grupo todo explodia em gargalhadas. Quando Vô Hipólito pressentia desconfiança de alguém, apressava-se em dizer que muitos dos casos que contava não tinham sido presenciados por ele, portanto não podia atestar sua veracidade. Mas não precisava explicar nada, acreditavam nele. Valorizavam tudo o que falava. Houve um tempo em que a falta de conhecimento levava as pessoas simples a acreditarem em contos folclóricos, em coisas banais como sendo verdadeiras. Precisavam acreditar em algo. Estes aspectos faziam dos moradores da roça daquele tempo, pessoas muito crédulas. Assim, tudo que saía da boca do velho, ainda que eivado de passagens dúbias, tinha crédito.
Certa vez apareceu por lá o capitão Furtado: Severiano Furtado Mangabeira Cavalcanti, militar reformado do exército de Alagoas, que jurava ter participado da volante que deu fim à vida e ao bando de Lampião na batalha de Angicos. O capitão era morador conhecido em São João Nepomuceno. De vez em quando dava o ar da graça em Pedra Preta só para prosear com o velho Hipólito, filho de escravos da fazenda dos Penha. Gostava de escutar histórias diretas da fonte. O capitão ainda não conhecia o causo de Zé do Pito
A história de Zé do Pito já vinha de muito longe, passando de um para outro. Cada contador colocava um tempero diferente naquela novela. De maneira que Vô Hipólito, antes de iniciar a narrativa, explicava:
_ Ói capitão, esse causo qui’eu vô li contá, me foi passado por Cumpá Leriano. Se assucedeu lá prás banda do Rio Manhuaçú, na divisa com o Epírto Santo. Eu inté num gosto muito de tocá nesse assunto, módeque as pessoa custuma num acreditá, achâno que a gente tá de proza fiada. O sinhô tá entendêno capitão? Pois é cuma eu to li falâno. Nóis é pessoa simples, criada aí prás bêra dos mato, mei’abandonado pela sorte. Mais sômo gente de bem. Nóis num tá acustumado a contá mintira não sinhô, viu? O que vancêis vão escuitá, é o mêmo qui’eu escuitei. Se fô mintira, já vem lá donde o causo si assucedeu né?
Começou dizendo que a primeira vez que ouviu a história, foi da boca de seu compadre Leriano. Falou do Rio Manhuaçú já dando o caso por começado:
_ O Manhuaçú, um poquim antes de disimbocá no Rio Doce, logo adespois de uma curva muito grande, junto do pé do morro, tinha um poço muito profundo bem no mêi’duma enorme mataria. Meu Cumpá Leriano dizia, que o povo do lugá contava, que ninguém pescava no tár poço, de medo, capitão.
_ Mas medo do quê, homem? – perguntou já espantado o capitão de Angicos.
_ Uai, capitão, do pêxe que vivia lá siô! – aproveitou o pequeno suspense, pegou a colher com cabo de 90 graus, apanhou uma brasa da bacia, atiçou em cima do cachimbo e começou a sugar o caniço. Num instante o ambiente estava tomado pelo cheiro do Tietê.
_ Espera aí! – quis saber o visitante – Medo de peixe? Seria um tubarão de água doce, ou coisa parecida?
_ Apois pode acreditá capitão. Num era ninhum tubarão não sinhô, qui eu só cunheço de ouvi falá. Mais tombém num era um pêxe quarqué, não sinhô! O povo contava qui o bicho era tão grandi, mais tão grandi, qui chegava a mais de trêis braça bem midida, capitão.
_ Mas Seu Hipólito, esse peixe é um caso muito sério homem! Mais de três braças? – o capitão repetiu a medida, ficou de pé e começou a andar de lado com os braços esticados, tentando estabelecer o tamanho do peixe. O capitão gostgava de provocar Vô Hipólito só para ouvir dele os detalhes envolvendo o assunto: - Mas isso é mais de seis metros de comprimento! – exclamou o capitão.
_ Mais num é o que falei? O povo contava qui’o bicho era tão grandi, qui num havia linha de anzó capaiz de arrastá o diacho do pêxe pra fora d’água, uai!? – do meio das pessoas que ouviam o relato, saíram vários murmúrios. Alguns se mexiam sobre o banco querendo fazer um aparte qualquer, mas se aquietavam em seguida por respeito ao relator.- O povo dizia tombém – continuou ele - qui’o miseráve do pêxe gostava mêmo era de enguli pescadô desavisado que ia lá no poção atazaná a vida dele, capitão.
O capitão que já estava sentado se levanta de novo assustado valorizando a história:
_ Como é que é, Seu Hipólito? Engolir pescador? No Rio Manhuaçú?
Do meio do grupo veio um: “Nossa!”, um: ”Oh!”, enquanto Vô Hipólito ajeitava a bunda preta do bule com café sobre a brasa. O velho se sentia muito orgulhoso quando o capitão Furtado aparecia na Pedra Preta e pedia para ele contar de seus causos. Em contrapartida procurava ser agradável e só tratava o visitante pelo peso da patente: Capitão. Nunca de Zi, como fazia com os mais conhecidos.
_ Pur essa lúiz qui tá alumiâno, seu moço! Sabe capitão, tem coisa entre o céu í a terra qui’a genti num pódi duvidá não sinhô! – os ouvintes concordaram acenando a cabeça. Uns que sim, outros que não, mas todos com a mesma intenção; de não duvidar da palavra de Vô Hipólito. Ele continuou entre baforadas e goles de café amargo_ Pois óia que eu num sô de contá mintira, não sinhô! Mais ainda bem que por lá, tinha o tár de Zé do Pito.
_ Zé do quê Vô, do pinto? – o capitão atiçava lenha na prosa e os presentes não se aguentavam, caíam na gargalhada. Vô Hipólito deu um pequeno sorriso e continuou bem humorado:
_ Nããão... Do pinto não, capitão, que num vô li faltá c‘uo respeito! Zé do Pito, do cachimbo, uai! Um sujeito tinhoso, temôso que nem uma portêra véia. Só prô sinhô tê uma idéia, capitão, o povo dizia que no mundo, num existia sujeito mais temôso qui’o Zé do pito. Tem inté uma ôtra história sobre ele que vô contá tombém pro sinhô. – Vô Hipólito ajeitou o corpo sobre o banco sem encosto, sugou o caniço do cachimbo, cuspiu de banda e apertou o fumo dentro do recipiente:
_ Bão... Mais cuma eu tava expricâno prô capitão, vô li contá um ôtro causo, só pro sinhô tê uma idéia da teimosia de Zé do Pito. – a exemplo de Vô Hipólito, todos se ajeitaram sobre o banco com muita expectativa. Ele voltou a dizer: - O povo di lá da bêra do rio conta que certa veiz, o Zé num conseguia pegá no sono, por causa de um pernilongo, que ficô a noite intêra fazêno zuêra lá no zovido dele. Dia vai, noite vem, tava lá di novo o pernilonguinho no zovido do Zé: “Zummm... Zummm... Zummm!” Aí o hômi ficô enfezado e armô um estratagema prá enganá o safado do pernilongo. Ficô deitado, quétiiin... Quétiiin, se fingíno de morto. – no grupo era puro silêncio. Vô Hipólito continuou: - Quando o pernilongo chegô zuâno, que nem doido, já levô um safanão no pé do zovido: “Pah!”, com tanta força, que foi batê lá na parede e caiu no chão c’oas perninha prá riba, mei zonzo. – outra vez a roda de ouvintes formou um bloco de pura gargalhada. Quando voltou o silêncio, Vô Hipólito prosseguiu: - Então o Zé aproveitô, a zonzura do danado mosquito e amarrô as patinha dele e ficô zumbíno nas zorêinha du bichim o resto da noite, só prá se vingá. Quando ele desamarrô as perninha do pernilongo, o vagabundo se escafedeu pela janela e nunca mais vêi atrapaía o sono do Zé. – o desfecho foi tão irressistível que todos riram muito e bateram palmas pela vitória de Zé do Pito contra seu desafeto pernilongo.
_ Essa é muito boa, Seu Hipólito, muito boa! – ainda com a mão sobre o estômago, sorrindo o capitão perguntou: _Mas e o tal peixe que dava sumiço em pescador?

(Continuação de Zé do Pito – próximo capítulo de REDOMA DE CHOCOLATE)

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