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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

PROSA

Figura: Trabalho do Tainan-6ª série do fundamental
disciplina:Informática
 
 

REDOMA DE CHOCOLATE-02

Pedro e Maria

Pedro cantava e tocava violão. Já Maria...
Bem, Maria também sabia cantar. Mas não era um canto como outro qualquer. Era um canto gutural, pra dentro, triste. Talvez para esquecer o sofrimento que trazia escondido dentro do peito. Ou, quem sabe para abrandar o amargor da boca. Talvez para não amaldiçoar o responsável por tê-la trazido ao mundo. Eram canções românticas, melosas, contando histórias sofridas de amores mal sucedidos. Tristes, mas não feias. Cantava, cantava... Cantava. Assim esperava que o tempo passasse mais rápido e a morte chegasse mais cedo. Maria sempre falava em morrer antes do tempo, em abandonar este mundo de dor e padecimento. Com certeza era por isso que nos momentos mais difíceis de sua vida, abria a garganta. Na hora de fazer o grude, quando tinha alguma coisa para cozinhar, ela cantava. Quando borrifava água no chão batido do casebre, para reduzir a nuvem de poeira, que atacava o peito das crianças provocando enorme chiadeira, ela cantava. Quando conseguia algum sabão, ia para o batedouro lavar os farrapos surrados da família, então ela cantava. Quando limpava a sujeira das bundas dos mais pequenos, para evitar o ataque da mosquitada, ela cantava. Cantava sem parar. Muitas vezes o canto acabava em lágrimas dolorosas acompanhadas de soluços abafados e dolentes. Por isso que as coisas não poderiam dar certo. Maria, mesmo não sendo alfabetizada, tinha uma leve noção das coisas. Era séria, honesta, tímida e introvertida; e carregava com ela, desde muito cedo, aquele sentimento de impotência, de derrota, próprio dos Negros. Quanto a Pedro, além de rude, irresponsável e analfabeto, não tinha noção de nada. Além disso era mulherengo, e Maria ciumenta. Aí, deu no que deu!

Redoma de chocolate, uma concentração de Negros. Era isso! O homem Gordo tinha razão. Era esse mesmo o nome que poderia ser dado à Vila Gavião. Um cercado cheio de negrinhos achocolatados, peladinhos, cabelos carapinha, narizes achatados entupidos de ranho, com barrigas esticadas, vazias de alimentos, mas cheias de vermes, correndo de um lado para outro, alegres, brincalhões, bonitos e felizes apesar de tudo. Este era um dos lados do retrato da Vila Gavião, um lugar completamente vazio de riqueza material, mas um caldeirão fervilhante de alegria, solidariedade, divertimento e abnegação.

Desde o momento em que os portugueses começaram a trazer os Negros para o Brasil, no século XVI, todo tipo de castigo, maus tratos, injúrias e humilhações eram permitidos contra eles. Amarrados ao tronco recebiam chibatadas que abriam valas em sua carne já ferida. O tratamento era feito à base de sal, limão e urina, uma forma cruel de aumentar-lhes ainda mais o sofrimento. Até a comida, que normalmente era destinada aos animais, lhes era oferecida. Na Casa Grande não lhes era permitido olhar diretamente na cara do Senhor. Eram obrigados a falar baixo, olhando para o chão e a responder o estritamente necessário: Sim Senhor! Não Senhor!

Pergunta-se: Comparando a vida do Negro do século XVI e a do Negro do século XXI, o que mudou? A resposta deve ser limpa, direta, sem “se”, nem “mas”. Diga o que mudou? O Negro brasileiro ainda não conseguiu aluir o status quo impingido a ele pelos senhores do século XVI. Hoje, ocupando a metade da população do país, ainda percebe-se a submissão do Negro em diversas circunstâncias. Para uma boa parte do outro lado da população, principalmente a elitizada, o Negro ainda é concebido e tratado como escombro, resíduo, um estorvo. Existe uma cultura arraigada por trás de tudo que é feito para denegrir a imagem do Negro. Algumas são institucionalizadas como: Mercado negro; fase negra, a coisa está preta. Poderia ser outra cor, por exemplo: Mercado vermelho, fase vermelha, a coisa está vermelha; que em muitas situações é igualmente utilizada para dar a idéia de perigo, de dificuldade, talvez por tratar-se exatamente da cor do líquido mais importante que transita pelo corpo do homem, o sangue. Mas não são apenas aquelas. Existem outras tantas que correm pela boca daqueles que se acham claros o bastante para ter o direito de criar situações de deboche envolvendo o Negro. Mas sempre com o pretexto de que tudo não passa de simples brincadeira. Contudo frases como: Preto parado é suspeito, correndo é bandido; Preto quando não caga na entrada, caga na saída, não podem ser consideradas simples brincadeira. Some-se a isso número infindável de piadinhas onde o Negro é colocado como figura central sofrendo, invariavelmente, todo tipo de escracho. Nelas todos os termos pejorativos possíveis são utilizados para execrar a imagem da personagem. Ou seja: Quanto mais injuriosa e desmoralizante, melhor.

Todo este processo resulta em conseqüências físicas e emocionais profundas, as quais a sociedade teima em dar pouca ou nenhuma importância. Prefere o desprezo mesmo sabendo que a reação possa gerar hostilidade e violência. Uma coisa leva à outra. Então por que a hipocrisia de que: “Tudo não passa de simples brincadeira?”. Qualquer leigo sabe que a prática de jogar o Negro ao ermo e ao abandono, sujeitá-lo à própria sorte, fere diretamente o âmago do Grupo. O reflexo deste comportamento jamais será pacífico. Um camundongo foge de um homem, mas ao se ver ameaçado num beco sem saída, investe contra seu agressor; não importa o tamanho que ele tenha. Isso tem um nome: Instinto de sobrevivência!

O Negro é pobre. Pessoas pobres são vítimas constantes de maus tratos de toda ordem. Além disso, quase tudo na vida de um indivíduo pobre, acontece de forma equivocada. A começar pelo nascimento. Chega ao mundo de qualquer jeito, passa por mãos desabilitadas, sofre todo tipo de discriminação e ainda se obriga a conviver e a observar os piores exemplos. Seja no espaço que lhe é destinado no trabalho, moradia ou lazer. Vão desde erros de linguagem, costumes inúteis, vícios dos mais diversos, até a exposição constante à cenas agressivas, que faz deles alunos compulsórios de uma verdadeira doutrina da mediocridade, da decadência dos valores tradicionais e disciplinares que deveriam nortear a moral e o caráter das pessoas. Impulsionados pelo desvelo público e pelas vistas grossas da população; condicionados a um sistema de saúde deficitário e uma formação escolar precária, tornam-se portadores de conhecimentos rudimentares que os transformam num grupamento fragilizado, sujeito a constantes surtos endêmicos e, politicamente, sem nenhum poder de barganha. Aproveitando-se deste aspecto, a burguesia faz deles objetos de manobra e os obriga a aceitar todo tipo de privação, inclusive subempregos, cujos salários ordinários não permitem quase ou nenhum conforto. Contudo, mesmo não sendo totalmente culpados pelo estado em que se encontram, acabam de alguma forma, se adequando à vida e às sobras que dela conseguem retirar.

O ser humano se acostuma a tudo. As pessoas pobres, mesmo despojadas do direito natural e legal que têm de viver condignamente ao lado de seus iguais; mesmo em meio ao caos e ao abandono, ainda assim encontram forças e espaço para a alegria e ajuda mútua. As mais nobres demonstrações de amor e solidariedade que já presenciei na vida, vieram do seio da pobreza e não da high society.

O princípio do contraditório é um direito previsto na Constituição Federal que garante a bilateralidade na discussão pela busca de justiça. É isso. O que o Negro quer não é revanchismo, nem desforra, nem privilégios, como muitos querem fazer crer. Quer fórum para discutir seus direitos, quer espaço para debater seus problemas, quer oportunidade para expor suas idéias. Quer a mesma oportunidade que o outro lado tem.

6 comentários:

  1. Vou incluir sua arte, mas pensei que fosse
    comentar sobre o texto e nem leu!!!!

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  2. ffff !!! na minha visão muito bãu =D como contra-argumentar contra isto? não somente na relação formal e lógica entre premissas e conclusões, mais no profundo sentido histórico, social e extramemente presente nos fundos de nossa hipocrisia e inércia diante da realidade do negro e da fome. Como contra-argumentar contra essa violência, quando nas entrelinhas de cada palavra vibra a experiência construída ao longo de anos de vivências. E assim, muitos de nós (brancos, morenos, vermelhos, amarelos e até negros) em uma realidade maquiada pelos automatismos e fugas de nossos comportamentos inseguros, medrosos e egoístas diante de uma verdade profundamente real e que grita por mudança urgentes, permanecemos inertes. O preconceito pra mim é filha do orgulho e do egoísmo, por evitar que o ser elabore uma percepção mais cuidadosa das experiências, valores e seres. Fechados em nossas redomas preferimos a inércia dos conceitos das maiorias e dos aclamados pensadores das estantes do que o sentido que nasce da investigação inteligente, sincera e plena da íntimidade de cada um. Preferimos ainda, enchergar pelos caminhos condicionados do pronto, do intelecto improdutivo das academias e das convênções meramente políticas e sociais. Proponho até como premissa a bem aventurança do pobre de espírito dita pelo pensador cristo que nesse ponto parece nos estimular a perceber que não basta uma condição material para alcançar o reino dos céus. E encaro aqui sem religiosidade que ele tem razão ao admitir esta proposição não porque a humildade também seja uma condição material em que seria aquele que tem muito pouco, mas, enquanto condição do ser que está desperto para seus limites e potencialidades, isto é, sabe quem é, pois pelas dores que vive no dia a dia observa a vida com os olhos mais abalizados para enchergar a verdade. Não é para generalizar dizendo: todo pobre é humilde e melhor abalizado para enchergar a verdade, mas tal como uma amiga diz, talves a pobreza tenha o seu mistério unificador pois pela dor é também capaz de realizar a ação fraterna entre os necessitados. Diferente dos pré-conceituosos e orgulhosos que insistem em se refugiar nas ilusões das ironias ou na formação de mundos encantados por modelos de falsa satisfação temerosos dos contatos humanos. Shopings, progamas de tv, BBB para fugir dos conflitos da vida e la se vai um arsenal de ilusões a mascarar a fome, pre-conceito e a miséria ao lado de casa promovendo pouco a pouco o engesso da inteligência e a inflexibilidade de coração. E lembrando que a miséria também toca as atitudes não só as ações de necessidade material. ÉEE não deve ser nada facil sofrer preconceito ou passar fome, aqui só posso ter idéia pela história e experiência desses grandes exemplos como meu pai e, nesse caso, meu tio. E nem sei se posso abalizar a dimensão desta vivência partilhada pelo meu tio, pois na íntimidade pulsa a experiência de uma maneira que as palavras não alcançam seu tônus ou intensidade. Mas não nego que tocou aqui meus pensamentos e sentimentos. Valeu tiozão pela partilha ,e assim, bem aventurados os pobres de espírito ou os que revelam resignação na escola da pobreza, pois abalizados para enchergar as possibilidades que a verdade apresenta conquistam pelo suor de seus esforços o edificio da compreensão. Sem pretensões de verdades absolutas mais apenas partilhando o que pude perceber em mim mesmo, através do texto, deixo aqui um grande abraço :)

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  3. Esta sua profunda reflexão sobre minhas humildes palavras me deixou muito orgulhoso. Principalmente ao atingir o âmago da idéia quando destaca que: "... a miséria também toca as atitudes não só as ações de necessidade material"

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  4. Li hoje, e postarei uma música, que se bem interpretada, acho que pode resumir partes do texto:

    Deixa o menino jogar
    Natiruts

    O valor de um amor não se pode comprar
    Onde estará a fonte que esconde a vida
    Raio de sol nascente brotando a semente

    Os anos passam sem parar
    E não vemos uma solução
    Só vemos promessas de um futuro que não passa de ilusão
    E a esperança do povo vem da humildade de seus corações,
    Que jogam suas vidas seu destino nas garras de famintos leões

    O valor de um amor não se pode comprar
    Onde estará a fonte que esconde a vida
    Raio de sol nascente brotando a semente
    Sinhá me diz porque é que o menino chorou
    Quando chegou em casa e num canto escuro encontrou
    A sua princesa e o moleque fruto desse amor
    Chorando de fome sem saber quem o escravizou

    Deixa o menino jogar ô iaiá
    Deixa o menino jogar ô iaiá
    Deixa o menino aprender ô iaiá
    Que a saúde do povo daqui
    É o medo dos homens de lá
    A consciência do povo daqui
    É o medo dos homens de lá
    Sabedoria do povo daqui
    É o medo dos homens de lá

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  5. Claro! Tem tudo a ver. O grande medo da sociedade rica e vilã, é que a pobreza creça e aprenda a pensar, aprenda a decidir por si mesma.

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