REDOMA DE CHOCOLATE - 05
Vô Hipólito
Vô Hipólito
Uma figura que Piah mantinha viva em suas lembranças era a de Vô Hipólito, pai de Pedro. Ao contrário de Vô Anastácio, pai de Maria, que faleceu antes de ser conhecido pelos netos. Com Vô Hipólito ainda foi possível muitos anos de convivência. Sempre fora uma referência da crendice do povo. Encontrava fundamento em qualquer história que lhe contavam; depois as repassavam usando seu jeito ingênuo de contar as coisas. Vivia a maior parte do tempo sentado dentro de casa, pitando um cachimbo feito de bambu, cortado bem próximo ao nó. Ninguém sabia quantos anos tinha, mas eram muitos. Pois o peso da idade prejudicava-o de caminhar e mal enxergava. Em torno da córnea, uma auréola azulada contava o tempo invadindo o olho, pouco a pouco. Quase todos os dias garotos da vizinhança se reuniam à noitinha em sua casa. Sentavam-se em torno de uma velha bacia cheia de terra, com brasas pela boca, e ficavam acomodados em silêncio só para escutar os casos contados por ele. Usar aquela bacia com brasas era uma forma de compensar a temperatura do corpo velho e debilitado pelos maus tratos recebidos ao longo do tempo. Não que Vô Hipólito tenha convivido à época do cativeiro, mas seus pais sim, quando os escravos eram humilhados e martirizados pelos seus senhores. Os sofrimentos de agora eram reflexos que o tempo não conseguia apagar.
_ Esquentá fogo é bão pra desentrevá os ósso, Zi! – dizia ele.
Durante os dias da semana Vô Hipólito só contava suas histórias à noitinha, nunca durante o dia. Não queria contribuir para a vagabundagem de ninguém. Aos domingos e dias santos era diferente. A qualquer hora o casebre estava aberto às conversações, e sempre havia alguém disposto a escutá-lo. No meio do borralho, da bacia com brasas, descansava um velho bule esmaltado com café ralo e sem açúcar. Bem que Vô Hipólito gostava do café bem docinho, mas o preço do açúcar andava pela hora da morte, então... Já desgastada pelo uso, a vasilha tinha a cara do dono. Apresentava um negrume no fundilho em decorrência do tempo de exposição ao fogo. De quando em quando, pegava uma canequinha de ágate, com o líquido preto fervendo, e sorvia um golinho sonora e vagarosamente, para não queimar os beiços. Depois, apoiava o cachimbo na gengiva banguela, fumegando sem parar, explicava aos garotos que aquelas figuras que eles gostavam de ficar olhando no céu durante o dia, à noite se materializavam em animais de verdade. Por isso não era bom ficar olhando muito tempo para elas.
Passar o tempo descobrindo figuras nas nuvens era hábito corriqueiro dos meninos. Ficavam de costas sobre a grama brincando de acompanhar o movimento das nuvens no céu e nelas descobriam todo tipo de figuras, mas preferiam as de animais. Vô Hipólito dizia que à noite, as nuvens se transformavam em bichos de verdade e vinham para dentro de casa e se sentavam na barriga de quem dormia de costas, sufocando a vítima até à morte. Aquela conversa atravessava horas a fio e causava forte impressão na molecada. O jeito como o caso era contado, os gestos acompanhando as palavras, o tom das falas nos momentos mais angustiantes deixava muitos morrendo de medo, mas ninguém dava o braço a torcer.
Quando estava no meio dos companheiros, Piah gostava de imitar Vô Hipólito:
_Óia aqui Zi, ocêis nunca ouvíro falá da tár de pisadêra? – antes que alguém respondesse a pergunta, ele emendava: - Pois intão Zi. São os bicho co’a cara do Coisa Ruim, qui vem sentá na barriga di ocêis, viu? Durmí di barriga prá riba num é bão não, Zi; num é bão. Né mêmo Dasdô? – Todos caiam na gargalhada ao verem Piah fazendo troça de Vô Hipólito. Dasdô, era Maria das Dores, mãe de Pedro.
No dia seguinte os meninos continuavam a olhar as nuvens em forma de figuras passeando pelo céu, como se quisessem desafiar os avisos do Velho. Vô Hipólito já havia contado muitos casos de gente que tinha morrido de pisadeira lá na fazenda dos Penha, em Roça Grande, no tempo em que também ele, ainda era menino.
As pessoas do lugar tinham o maior respeito por aquele negro velho, descendente de africanos, escravos da fazenda dos Penha de Souza, na região de São João Nepomuceno. Todos aprendiam muito com ele, principalmente as crianças. As histórias que contava não eram apenas para surpreender e arrepiar os pelos. Serviam também como lição de vida. Ele ensinava que em qualquer circunstância, a experiência dos mais velhos precisava ser levada em consideração antes que alguma atitude fosse tomada. Dizia que os mais idosos, por terem enfrentado o mundo por mais tempo, guardavam melhores conhecimentos para serem repassados aos mais jovens. Por isso tinham que ser ouvidos.
Hoje é possível entender, perfeitamente, o significado de muitas de suas mensagens. Aquela história de animais das nuvens que vinham sentar-se à noite na barriga das crianças, não passava de uma técnica sutil para impedir que os meninos tivessem os olhos prejudicados pela exposição demasiada à claridade do sol. De alguma forma ele sabia do perigo, então inventava a pisadeira que vinha à noite perturbar o sono daquelas crianças arteiras.
Ele ensinava que era preciso escutar os conselhos dos mais velhos e seguir-lhes os exemplos. Respeitar a propriedade dos outros, pedir licença, fazer agradecimentos, dizer bom dia ou boa tarde. Que o trabalho era importante, pois a vagabundagem levava ao mau caminho e que a religião servia para dar paz ao espírito e conduzir a alma para o lugar que Deus escolhesse para cada um de nós. Vô Hipólito causava uma grande admiração a todos. Ninguém conseguia imaginar como um filho de escravos que nunca havia sentado num banco de escola e que, provavelmente, nunca se ausentara para muito além dos limites da fazenda, tivesse tantos ensinamentos a dar.
A fama do Velho contador de casos ia longe. Tinha uma grande freguesia e um vasto repertório. Alguns vindos de gerações distantes, rolando tempo afora. Outros ele tirava de suas próprias observações do dia-a-dia. Acontecimentos simples envolvendo um pouco de tudo, passavam a ter grande valor se contados por ele. As pessoas, conhecidas ou não, estavam sempre visitando o casebre do Velho, puxando prosa só para incitá-lo às histórias que tinha para contar.
Dentre as diversas que contava, estava a de Zé Góes, um matuto que morava nas vizinhanças. Zé Góes não era muito chegado ao trabalho. Vô Hipólito contava que nas tardes estafantes, o calor sufocava tanto, que não havia cristão que suportasse levar o eito da roça a bom termo. E que nestas horas, Zé Góes procurava uma boa sombra e caia no sono.
Vô Hipólito sempre dizia que o mês de agosto não era triste só porque o céu ficava turvo, invadido pela fumaça das queimadas. Mas também porque o calor era causticante, infernal, capaz de ferver os miolos de qualquer criatura que se atrevesse a ficar exposta ao sol. Que não era à toa que o povo dera ao mês de agosto, o nome de “mês do cachorro louco”. Era porque justamente nessa época, os coitadinhos ficavam com o cérebro em brasa, correndo de um lado para outro, feito almas penadas à procura de água e sombra. Muitas pessoas ainda caçavam os infelizes alegando que estavam doidos. Mas nem todos ficavam contagiados pela loucura, somente aqueles que babavam o tempo todo, jogando espuma pelos cantos da boca, estariam marcados pela doença. Mas Zé Góes vai ficar para o próximo capítulo.
O tempo, sempre ele! Vô Hipólito, Zé Góes, nuvens brancas, pisadeiras, a molecada. Doces lembranças de um tempo em que viver era simplesmente fazer parte da turma. Fosse eu um filósofo, ou um intelectual das letras, iria escrever sobre o tempo. Tudo tem a ver com ele; tudo acontece em função dele. O tempo é sem dúvida, a referência mais importante da vida. Não existe uma situação sequer, que não exija sua presença misteriosa. Bom ou ruim, grande ou pequeno, feio ou bonito, forte ou fraco, rico ou pobre, negro ou branco, lá está o tempo para mensurar o fato. Ora como advogado, ora como juiz, ora como carrasco, jamais se omite, não importa o lapso.
Ai Deprá,
ResponderExcluirVai continuar no capítulo 006
O "causo" do Zé Góes, não perca, blz?